Fernando Pessoa por Michael Barrett

FERNANDO PESSOA, 1985, por MICHAEL BARRETT (1926-2004); NANQUIM S/ PAPEL, 300×195

“Outra vez te revejo,

  Mas, ai, a mim não me revejo!

  Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,

  E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –

  Um bocado de ti e de mim!…”

                                                                            Álvaro de Campos

É sobejamente conhecido o fascínio que Michael Barrett nutria por Fernando Pessoa e pelo complexo heteronimismo pessoano. Ao longo de anos de uma carreira artística, versou em telas

múltiplas individualidades de Fernando Pessoa que hoje redescobrimos a cada passo no encontro da sua obra legada.

Assim, cabe-me acreditar que Barrett não nutria apenas mero fascínio de um qualquer curioso. Antes, mostra um conhecimento profundo da sua obra poética e de artigos que escreveu  que interpretou no seu ritmo, ao seu jeito, pela sua paleta e mestria, em obras que perpetuam o Poeta ímpar e a sua genialidade. Tal como Barrett se via a si próprio: não um marginal, mas um “out side” de modas, estilos pré-definidos, uma personalidade múltipla, mas sua… um compromisso consigo mesmo. 

Um paralelismo místico que Barrett cultivou, levando alguns a pensar num devaneio artístico, mas antes, prova de uma cumplicidade com a obra pessoana e a visão do outro em que, por vezes, se revê.

A Arte é o perscrutar do Artista por caminhos seus ou alheios a si, mas que no percurso intimo se transpõem para composições viscerais que provam a excelência do trabalho e do conhecimento.

Nesta peça encontro, mais uma vez, o intimismo por Barrett de Pessoa!

   

Manuel Filipe – Precursor do Neorrealismo em Portugal

A Familia
A Família, 1943

Manuel Filipe nasceu em Condeixa-a-Nova, 1908, e faleceu em Lisboa, 2002. Traduziu de forma paradigmática o grito de revolta, a subversão, em criação artística. A sua designada “Fase negra” (1943-1945), marcadamente neorrealista, e de inspiração expressionista, do realismo socialista, e dos coevos mexicanos, é uma expressão dramática da temática social e da luta contra a opressão totalitária. Entre o humor ou o satírico e o drama da miséria humana, representa transfiguradamente, através dos traços negros sobre papel, os ideais por que pugna, a “tomada de consciência dos homens avisados” e inconformados.

Esta é, sem dúvida, a leitura nesta obra: A Família, de 1943. Início da sua fase artística classificada como “Fase negra”.

Filho de um trabalhador rural e de uma pequena comerciante, ao mesmo tempo que ajudava o pai nas suas horas livres, no amanho da terra, dava os seus primeiros passos na Arte do Desenho quando ainda vivia em Condeixa; possivelmente, a (auto) imagem aqui retratada. Frequentou aulas particulares e posteriormente a escola de artes e ofícios. Vai estudar para Coimbra, para o Curso Misto de Ciências, Letras e Artes, contudo a sua aprendizagem para professor está ligada ao desenho que insistentemente praticava. A irreverência que o caracterizava vale-lhe nos primeiros tempos da Ditadura um mês de prisão no Forte da Trafaria. Foi professor de Desenho no Ensino Liceal. Na sua carreira pedagógica, aquando das exposições individuais que realizou no Porto e em Braga, e da II Exposição Geral na SNBA, foi ameaçado pela PIDE de que se voltasse a expor seria demitido do cargo de professor. Nessas exposições, as suas obras consideradas de subversivas, foram retiradas, vandalizadas ou, mesmo, a mostra mandada encerrar pelo Governador Civil.

Esta repressão, esta censura por parte do Estado Novo leva-o a abandonar a actividade artística até 1961, data de início de uma segunda, distinta e muito fecunda fase criativa. Nas próprias palavras de Manuel Filipe podemos encontrar o sentido da sua arte dos meados do século vinte, quando afirma: a pintura neorrealista “deve ser esteticamente bela (…) [mas] tematicamente (…) tratando corajosamente problemas que possam melhorar a condição humana”. Reflexo de um humanismo ansiado, e também com certeza de uma guerra que lavrava no mundo, este artista mostra num expressionismo denso, mas sempre estético, a rudeza desta condição, quando representa figurativamente as mais gritantes injustiças sociais, os infortúnios da pobreza, da servidão e da brutalidade. As personagens que traça são no fundo, sobreviventes, de mãos e pés desconformes, numa desmesura de um olhar sempre aberto, para a consciência ou para um soabrir da esperança.